Escolho como símbolo para o ano que agora começa o Pelicano. Da beleza poética das lendas e do imaginário ao apelo do mistério alquímico e do romanticismo, do sacrifício feito em nome do amor ao significado maçónico.
E eis aqui o que confere maior e mais força ao seu significante e o que verdadeiramente encerra a sua forte mensagem. «… some-te lá no cimo da fraga mas deixa que no teu rasto fique o sangue anunciando a esperança noutro dia. Sê como a onda que morre para outra começar.» (Fernando Namora, “Mar de Sargaços”)
Várias escolas iniciáticas místicas, sobretudo as do período medieval, divinizaram o Pelicano como o seu símbolo, emprestando-lhe o divino e a magia ora pelo dom da Fénix ora pelo talento do Amor Maior.
Segundo a interpretação do escritor do séc. IV, Physiologus, o Pelicano é aquele que dilacera o seu próprio peito para aspergir com sangue os seus filhotes já levados pelos braços da morte, na esperança de os ressuscitar.
PUBLICIDADE
Foi desde logo com os cátaros que o Fiel Pelicano vestiu toda a sua carga simbólica. Os sacerdotes cátaros, entre os séculos XI e XII, chamavam-se a si mesmos de “popelicans” [termo usado na gíria francesa formado pela contracção da palavra “pope” (papa) com “pelican” (pelicano)], ou seja, os cátaros seriam os filhos nascidos do sacrifício de Jesus, os que diziam possuir o verdadeiro segredo da vida, paixão e morte do Filho de Deus.
No mundo alquímico, o Pelicano foi utensílio e foi, simultaneamente, símbolo. O utensílio (alambique de vidro, em forma de círculo, feito uma só peça, com o bojo encimado por um capitel tubulado, de que partiam dois tubos opostos e encurvados, formando uma asa) fazia com que o líquido destilado recaísse gradual e constantemente dentro dele. Ali mesmo, a função do aparelho desvendava o símbolo, alimentando sucessivamente a experiência alquímica. Esta jorrava como que soprando pela “vida” das matérias e dos fluidos, o tal alimento, produto das suas entranhas, a “obra” sonhada e pensada pelo alquimista. A grande “obra” provocava-se a si própria num acervo múltiplo de coloração e fumos, do preto ao branco, do verde ao azul e deste amarelo. E nesse arco-íris, as simples transições entre as cores nucleares assumiam-se como prenúncios da vida humana: o preto simbolizava um cadáver, mas também um esqueleto e também um corvo, o branco fazia-se cisne, o vermelho, a rubificação e a fénix, o tal Pelicano, que, como a sua juventude majestática, se erguia sublime, coroado e encerrado no Ovo Filosófico.
Os rosa-cruzes, originariamente alquimistas, adoptaram o Pelicano como símbolo da capacidade de regeneração química da matéria. E, nas suas alegorias, associaram essa simbologia com o sacrifício de Cristo, cujo sangue derramado sobre a cruz era tido como instrumento de regeneração dos espíritos, medida essa necessária para a salvação da humanidade.
São Jerónimo, num comentário do Salmo 102, disse: “Sou como um pelicano do deserto, que fustiga o peito e alimenta com o próprio sangue os seus filhos”. “Ó pássaro bom! Ó pelicano bom, Senhor Jesus!”
“Que o pássaro bom nos ensine amar mais a Eucaristia, Sacramento no qual Jesus se acha presente, com seu corpo, sangue, alma e divindade. Ele é um banquete sagrado, o pelicano bom a inundar-nos com o vosso sangue, sangue do qual uma só gota pode salvar o mundo inteiro” (Santo Tomás de Aquino).
Na Bíblia, a sua menção precede a da pomba. E ei-lo no Salmo 101:7 “Assemelho-me ao pelicano do deserto, sou como a coruja nas ruínas.” E no Salmo 102:6: “Sou semelhante ao pelicano no deserto; sou como um mocho nas solidões.”
Na iconografia cristã, o Pelicano abre e encerra o símbolo eucarístico “Eu sou o Pão Vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que deverei dar pela vida do mundo é a minha carne.” (João 6, 51-71).
[otw_shortcode_button href=”https://payment.hipay.com/index/link/id/54D4F50E6CEB9″ size=”medium” icon_type=”general foundicon-heart” icon_position=”right” shape=”radius” color_class=”otw-aqua” target=”_blank”]APOIE a continuidade da Cerberus e faça um donativo de 1.99€ ou 6.58 Reais![/otw_shortcode_button]
Mas é o hino «Adoro te devote» que lhe presta a mais feliz homenagem: “Pie pellicáne Jésu Domine, Me immundum munda túo sánguine, Cújus una stílla sálvum fácere Tótum múndum quit ab ómni scélere.” (“Senhor Jesus, terno pelicano, lava-me a mim, imundo, com o teu sangue, do qual uma só gota já pode salvar o mundo de todos os pecados”).
Daí o Pelicano erguido como a própria representação das virtudes rectificadoras do cristianismo. Qual rosa mística! Qual Fénix renascida!
A Maçonaria vê no Pelicano a essência do Grande Arquitecto do Universo, que, com a sua própria substância, alimenta os seus filhos. Torna-se o Pelicano, abrindo as suas entranhas para alimentar os seus filhos amados, os quais, figurativamente, se retratam sempre em números sagrados: 3-5-7. E é por isso que o Pelicano foi escolhido como o símbolo representativo do Grau de Cavaleiro Rosa Cruz, o grau 18 (grau alquímico por excelência e cristão), apelando à simbologia do sacrifício do Filho do Homem, Ele mesmo a personificação da caridade altruísta, do amor abnegado e gratuito. O Pelicano é aqui o símbolo do amor paternal, ao ponto do sacrifício seguido de imediato pelo renascimento. E, ao mesmo tempo que é Pai ele é Mãe. E daí que seja, por excelência, o símbolo que rege o veneralato. O Venerável, a Mãe eleita, acolhe-o como símbolo da sua maternidade, a mais augusta, a mais elevada função de amor. O amor feito divindade humana no seu grau máximo. E, assim, como o Pelicano, o Venerável recorre à sua “bolsa”, e, regurgitando, com sensibilidade, ali deposita os alimentos para os filhos, aqueles que assumiu como “seus” pelo mandato que lhe foi confiado, para, com prontidão e solicitude, lhes satisfazer as necessidades de alimento espiritual e fraterno.
“No simbolismo maçónico, o sangue do Pelícano significa o Trabalho Secreto por meio do qual o homem é elevado da escravidão da ignorância à condição de liberto através da sabedoria.” (Manlly P. Hall)
A dimensão mística do símbolo é transportada por Alfred de Musset, no poema O Pelicano: “Qualquer preocupação que sofras em tua vida,/ Oh! deixa dilatar-se, esta santa ferida/ Que os negros serafins têm cavado no teu peito/ Nada nos faz tão grandes como um sofrer perfeito./ Mas, por estar atento, não creias, ó poeta,/ Que no Mundo a tua voz deva ficar quieta!/ Os mais pungentes são os cânticos mais belos,/ E eu conheço imortais que são tristes anelos./ Quando o pelicano, em longa viagem solta,/ Nas brumas da tardinha aos seus caniços volta,/ Famintos filhos seus caminham sobre a praia,/ Vendo-o debater-se ao longe, em cima, às plúmbeas águas/ Já crendo em apanhar e repartir a presa/ Eles correm ao pai com gritos de alegrias/ Erguendo os bicos sobre as gargantas frias./ Ele, galgando a passos lentos uma rocha elevada,/ Na sua asa pendente abrigando a ninhada,/ Pescador melancólico, ele olha os céus./ O sangue corre em golfadas no seu peito aberto;/ Em vão dos mares escavou a profundeza:/ O Oceano estava vazio e a praia deserta;/ Por todo o alimento que ele traz no seu coração./ Sombrio e silencioso, estendido sobre a pedra,/ Repartindo aos seus filhos as suas entranhas de pai,/ No seu amor sublime embala a sua dor,/ E, olhando escorre o seu peito a sangrar,/ Sobre o seu festim de morte ele prostra-se e cambaleia,/ Ébrio de volúpia, de ternura e de horror./ Mas às vezes, no meio do divino sacrifício,/ Fatigado de morrer em tão longo suplício,/ Ele acredita que os filhos o deixem vivendo;/ Então soergue-se, abre a sua asa ao vento,/ E, ferindo-se o coração com um grito selvagem,/ Solta dentro da noite um tão fúnebre adeus,/ Que os pássaros dos mares desertam a beira-mar,/ E que o viajante demorado na praia,/ Sentindo passar a morte, se recomenda a Deus.” (La Nuit de Mai (1835)).
O Pelicano, enquanto Dador prestimoso, é-vos pedido, é-vos oferecido. E é-vos apresentado no final dos trabalhos, no Tronco da Viúva, guardado no sigilo e no silêncio do Hospitaleiro e do Venerável. Ambos providenciam. Ambos amparam.
Na sacralidade do rito, faço duas ressalvas quanto ao Tronco da Viúva.
Uma, para a descrição que rodeia o seu uso, adentro do texto bíblico (Mateus 6:2-4) 2 “Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. “3 Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita; 4 para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.”
Outra, para a sacralidade que acompanha a sua passagem pela Loja e que provém do conjunto de energias [centradas, por fim, na Egrégora da Cadeia da União] que animam os Irmãos, como incenso queimado (como a lei de Amra – causa e efeito).
Como construtores sociais, tomemos consciência do nosso papel na Ordem e na Sociedade. De dentro para fora. De fora para dentro.
Lembremo-nos da lição do Pelicano.
Da caridade com que distribui prazenteira, ainda que dolorosamente, o alimento em prol dos filhos que ama. Em bondade abnegada. Para nós, homens que se aprimoram na conversão dos símbolos operativos em valores e princípios, em regras e em atitudes, o Pelicano insurge-se como uma força a trabalhar em Nós. Copiemos-lhe os gestos, indo em socorro dos que mais precisam. Por excelência, prioritariamente, dos nossos. Sem alardes. Sem alarido. No mais profundo amor.
Movidos pela energia do símbolo, o Pelicano convida a que se abramos as nossas entranhas e a que deixemos cair o alimento nelas contido, em amorosa fraternidade, gota a gota, pedaço a pedaço (3-5-7), o alimento do afecto e da atenção em falta.
Ser Maçon é Ser esse Pelicano. Oferecer essa ajuda, desmesurada e voluntariamente. Emprestar as nossas forças anímicas, materiais e espirituais – não as que nos sobejam, mas todas as que temos – a quem delas precisa. Provir essas necessidades afectuosamente. Sermos e Estarmos para os Outros, pelos Outros, com os Outros e nos Outros. Enlaçarmo-nos nesse (enorme) abraço fraternal.
Sejamos, pois, como o Pelicano.
A todos, um bom 2015.
Anabela Melão, Venerável Mestre da Respeitável Loja Eclipse